sábado, 22 de fevereiro de 2014

TORRES DE MARFIM

É nas épocas de crise que a cultura tem de mostrar a sua força para fazer frente aos “gestores” que não entendem que os sacrifícios só valem a pena por causa da cultura, como lembrava Churchill, um homem de cultura que governou um país em crise. Mas é também nas épocas de crise que se sacode o pó dos reposteiros e se deitam abaixo as torres de marfim.
Em 1958 Álvaro Malta, um cantor português, desafiava para um duelo Alfredo Kraus, um dos maiores cantores espanhóis de todos os tempos. Tudo por causa da Maria Callas, uma cantora americana com quem Malta entrara de braço dado no palco do São Carlos depois de Maria Callas ter “andado a dormir” com o Kraus. Cantava-se e representava-se a Traviata em Lisboa.
Apesar deste grande feito já quase ninguém fala de Álvaro Malta, obstreta e cantor que aos oitenta anos ainda fazia partos. Desconheço se ainda os faz. Tinha 58 anos quando deixou de cantar. A grande Callas não cantou a partir dos 51 anos. A crítica não lhe perdoava a velhice na voz, apesar da fama, glória e grandeza.
Em 2009 acabou em Portugal um projecto educativo musical interessante e a sua criadora, Maria João Pires, partiu para o Brasil. Governava o país, ainda sem crise, um governo de sinal contrário ao actual.
Um cantor português de 65 anos partiu para o Brasil, o lugar do Éden, o paraíso perdido, como acreditava Colombo. Não o querem ouvir, diz ele. Acha que ainda tem muito para dar, e eu acredito que sim. O filho, um escritor que nunca li (os excertos por onde passei os olhos não me entusiasmaram), com grande sucesso no nosso país, com prémio literários, veio a público dizer que este país não merece o pai (quiçá ele próprio, o escritor). O filho vive do seu trabalho de escritor, num país com uma população inferior à de Paris, Londres ou São Paulo, sem hábitos de leitura, e onde Torga precisava de dar consultas de otorrino para pôr o pão na mesa.
O pai, o cantor cujo sucesso se iniciou nos anos 70 durante o regime anterior ao 25 de Abril, em programas da televisão pública, acha agora que o país é mal agradecido. Sabemos que sim. Lembro-me ainda do que fizeram à Amália no período revolucionário, quando o cantor ganhava festivais da canção. Um país onde os críticos jamais se atreveriam a imitar a crítica estrangeira, que desancava na Callas, para beliscar um Tordo.
Falta-me pachorra para a auto comiseração. É caso para dizer: mal agradecidos.


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