"Querer-se livre é também querer
livres os outros."
Simone de Beauvoir
Uma das tácticas dos inimigos da
democracia é a criação de manobras de diversão sob a capa da justa
reivindicação de direitos: junta-se um grupo ruidoso, a maior parte das vezes
com razões para protestar, ganhando com isso a simpatia do público em geral, e
organiza-se uma manifestação de forma a impedir o livre exercício das regras
democráticas. Com alguma sorte esse grupo sofre qualquer tipo de retaliação ou
insulto transformando-o rapidamente de revoltoso em vítima. A empatia fica
então assegurada e é ver os media e as redes sociais a fazerem coro com o
protesto, conseguindo-se assim o que não se consegue pelo voto. Denunciar este
esquema torna-se perigoso pois faz centrar sobre quem o denuncia a fúria de
quem tomou o partido das supostas vítimas. Evitando cair nessa armadilha,
assumo o papel de ovelha tresmalhada como meio de preservar o meu sentido
crítico. Não para qualquer tipo de publicidade ou tomada de posição em favor
deste ou daquele partido. Se alguma pretensão política pudesse ter seria sempre
em defesa da liberdade e da democracia, mesmo que por causa dela o meu voto não
seja o que vence.
Simone de Beauvoir, com o espírito
livre e superior que se lhe reconhece, disse um dia que não podíamos ter medo.
Nesse sentido, quando os nazis ocuparam a França, afirmou que não se podia
permitir que os nossos carrascos nos criem maus costumes. Beauvoir é grande
demais para ousar interpretá-la mas não errarei se disser que com carrascos se
referia aos nazis, inimigos da liberdade e da democracia, e com maus costumes
se referia ao medo por eles causado.
Falando em Simone de Beauvoir, em
liberdade e em democracia, vem-me à lembrança o dia de hoje, 14 de Julho, dia
da tomada da bastilha que serve de símbolo à revolução francesa. A tomada de
uma fortaleza onde se prendiam os que discordavam do poder absolutista e
autocrático é sempre um símbolo forte, mas sucedeu devido a um equívoco: um falso
rumor criado para obter a fúria das massas. Apesar de não ter sido nem a causa
nem o início dessa revolução a França celebra o dia com pomposa parada militar,
não se lhe conhecendo contudo feitos guerreiros desde Napoleão que justifiquem
tal pesporrência. Mau sinal celebrar-se a liberdade com o brilho das baionetas.
A revolução francesa, acontecimento por
demais importante na história da humanidade, está cheia de equívocos. Desde
logo porque se inicia com aqueles que mais tarde irão sofrer no pescoço os seus
efeitos. Os nobres, descontentes com a acção do rei em querer redistribuir a
enorme riqueza que a França da altura produzia (estava longe de ser um país
arruinado como por vezes se pensa), encostaram-se à burguesia para juntos
acabarem com o regime absolutista e decidirem eles o valor dos impostos. Sem o
saberem assinavam a sua sentença de morte, porque isto de revoluções sabe-se
como começam mas não como acabam. Com a revolução acabou a distinção medieval
entre povo, clero e nobreza: todos passaram a ser cidadãos com iguais direitos
e deveres.
Se à revolução devemos muito da nossa
liberdade e democracia, convém não esquecer que o caminho foi trilhado muitas
vezes sobre o “Terror”. Outro dos equívocos, por exemplo, foi a condenação de
Lavoisier cujos feitos são bem mais dignos do orgulho francês do que as
evoluções no campo de batalha. O pai da química moderna foi guilhotinado no
período conhecido pelo “Terror” que se seguiu àqueles actos revolucionários,
após julgamento sumário um dia antes da execução. O seu crime: ter sido,
durante algum tempo, cobrador de impostos. Num segundo caiu uma cabeça que um
século não seria suficiente para produzir, como afirmou Lagrange, outro grande
homem das ciências. Pelos equívocos que geram o Terror, o carrasco decapitou um
rei bom, mas não democrata, que quis tirar aos nobres para dar ao povo, e um
cientista que para ganhar a vida se viu obrigado a cobrar impostos. Os
carrascos nem sempre são os culpados mas são sempre a mão visível de quem devia
carregar a culpa.
Carrascos da democracia há muitos e por
isso todo o cuidado é pouco. Desde logo os que pretendem pôr em causa os
direitos à educação, à saúde e ao trabalho que foram conquistados pela
democracia que temos, centrada numa assembleia parlamentar e legislativa onde
se sentam os representantes do povo, que é o conjunto dos eleitores. Nas suas
galerias podem assistir eleitores que não representam ninguém a não ser eles
próprios. É assim dentro das regras democráticas e não é subvertendo-as que
podemos lutar contra os que põem em perigo a democracia, inclusive substituir
os governos que julgamos carrascos dos nossos direitos. Calar o parlamento é
acabar com essa possibilidade. Sempre que se subverteram as regras
democráticas, mesmo em nome das boas intenções, resultou invariavelmente em fascismo
e ditadura.
O que distingue a democracia de um
totalitarismo, não é a legitimidade garantida pelo número dos apoiantes.
Mussolini, pai do fascismo, tinha o apoio da larga maioria dos italianos, tudo
assim o indica, e era bem visto e admirado pelas potências europeias e
americanas antes da guerra. Essa legitimidade baseada pelo apoio das massas
também é tirania. Em democracia, para que a vontade da maioria não seja
tirânica, existem mecanismos que garantem os direitos da minoria, desde logo a
liberdade de expressão e opinião. Ouvir uma dirigente sindical, militante de um
partido com assento na assembleia, dizer que o parlamento podia fechar porque
não fazia falta nenhuma, é o mesmo que ouvir um insulto à democracia. Ao
dizê-lo aproxima-se das teses dos fascistas que foram e são autênticos
carrascos da democracia.
Um grupo de pessoas que decida invadir
as galerias da assembleia para impedir o seu livre exercício tem como intuito
causar medo aos representantes do povo. Se esse grupo é liderado por quem afirma
querer interromper a democracia, confunde-se perigosamente com os inimigos da
liberdade. Em democracia as pessoas são iguais e o povo é o conjunto dos
eleitores. Ninguém tem o direito de julgar saber a opinião do povo sem que este
a expresse nas urnas.
Como
dizia Sartre, somos todos individualmente responsáveis pelos crimes que
colectivamente se fazem. Quem não quer ser carrasco não lhe vista a pele.
* CAPANGAS
- Termo com que Mário Soares brindou um grupo de eleitores que se manifestou em
público, no lugar errado à hora errada.
Imagem: bandeira da Hungria com
buraco donde se retiraram os símbolos da ditadura e do invasor em 1956