Vai assim em francês
porque foi na língua de Voltaire que picharam as paredes da Sorbonne.
Na minha juventude tive
um vizinho que era agente da PIDE/DGS. Homem simpático e afável carregava um
fardo que lhe amargurava a alma mas alimentava o estômago. Como era culto e
sabia línguas acumulava com a censura a tudo o que fosse inglês e a sua biblioteca
pejava de livros e folhetos proibidos. Uma vez viu-se obrigado a censurar a
capa de um disco, já não sei de que grupo de rock, porque trazia a letra das
músicas. As músicas podiam passar mas o texto escarrapachado na capa, apesar de
em inglês, não. Com ar de menino que foi ao pote do mel trouxe-nos o disco com
a capa, para que pudéssemos usufruir daquilo que acabara de proibir, num
exorcismo possível dos seus demónios. Outros discos trazidos por ele
mostraram-nos então um mundo para além do cinzentismo daquele fascismo que até
desse nome tinha medo. E foi assim que conheci Zeca Afonso e Francisco Fanhais.
Um dia entrei na
biblioteca deste meu vizinho e, como Ali Babá, maravilhei-me com aquela
“caverna” de tesouros inalcançáveis. Escondido nas estantes, entre outros,
“Fuenteovejuna” de Lope de Vega que o regime permitiu ao Teatro experimental de
Cascais levar às colónias (difícil proibir um escritor do século de ouro
espanhol). Nas paredes, cartazes do “Maio de 68”. Junto ao cartaz dos direitos
do Homem, impressionou-me a frase: “É proibido proibir”, e foi como se um campo
coberto de flores de todas as cores se abrisse à minha frente.
Era da PIDE/DGS e da
censura este meu vizinho que me abria postigos gradados por onde eu espreitava
um mundo de liberdade. Pensava ele que assim, em doses homeopáticas, talvez não
nos fizesse muito mal enquanto lhe aliviava a consciência. A ditadura velava
por nós, proibindo-nos o pensamento livre que só nos podia causar inquietações
e angústias, terríveis para o bom funcionamento do coração e do fígado, como se
sabe. Agora são os filhos e os netos do “Maio de 68” que nos espartilham a vida
com proibições, numa constante preocupação com o nosso bem-estar. Para
diferentes regimes, diferentes os métodos com que “nos tratam da saúde”. Não
foi nas paredes de um “PIDE” que li a célebre frase que nos prometia um mundo
sem proibições? Quem me mandou acreditar?
E volto às paredes dos
boulevards de Saint-Michel e Saint-Germain, que tanta sobriedade não se
aguenta: “O álcool mata, tomem LSD”, que talvez vejam um coelho vestido de
arco-íris!